MANIFESTAÇÕES RACISTAS MARCAM O ANO

No esporte, nas redes sociais, em brincadeiras aparentemente inocentes. Em 2014 o racismo ganhou destaque na mídia e abriu espaço para discussões.

Por: Thais Ferreira

28 de agosto de 2014, Arena do Grêmio, Porto Alegre, Brasil. Os torcedores gremistas debruçados sobre a grade atrás do gol de Aranha guinchavam e insultavam o arqueiro do clube adversário. O goleiro Aranha bate no peito e diz: “Sou preto sim. Sou negão sim”. Outros jogadores do clube gesticulam e apontam a arquibancada tricolor como se implorassem para que as câmeras de televisão filmassem a atitude da torcida. Por volta dos 43 minutos do segundo tempo o jogo foi paralisado, os jogadores do Santos avisam o árbitro Wilton Pereira Sampaio o que está acontecendo, apesar das reclamações, Sampaio manda a partida seguir.  

Em entrevista à ESPN Brasil o jogador de futebol declarou que foi insultado pela torcida gremista com palavras racistas como “preto fedido”. “Aguentei até que começaram com o canto de macaco. Fico nervoso, desculpa a palavra, fico puto com essas coisas acontecendo aqui”, desabafou Aranha.

28 de agosto de 1963, Lincoln Memorial – Washigton D.C, Estados Unidos da América. A praça tomada por cerca de 250 mil pessoas, brancos e negros unidos em uma marcha contra o preconceito.  O líder do movimento, o pastor Martin Luther King proferiu naquela tarde o que viria se tornar seu mais famoso discurso, “I have a dream”. Tratava-se do desejo de uma América (e um mundo) com igualdade entre negros e brancos.

O contexto social dos Estados Unidos era contraditório. Por um lado o país se projetava como moderno e como liderança mundial. Os norte-americanos possuíam as mais avançadas tecnologias e armamentos, por outro lado a segregação racial impedia o casamento entre negros e brancos, limitava o acesso à educação de jovens afrodescendentes e determinava assentos nos ônibus. Desde o discurso de Luther King que se tornou um dos maiores símbolos da luta não-violenta contra o racismo, muitas leis segregacionistas foram derrubadas garantindo direitos aos negros.

De volta a 2014, no Brasil, as manifestações relacionadas ao “Caso Aranha” principalmente nas redes sociais desencadearam discussões desde as punições aos torcedores identificados, em especial Patrícia Moreira, flagrada pelas câmeras de televisão chamando Aranha de ‘macaco’, até sobre a reação do goleiro do Santos.

Embora tenha sido muito bem acolhida pelas redes socias, a revolta de Aranha foi questionada, inclusive por um negro. Pelé, ídolo santista e da seleção brasileira, declarou que a postura de Aranha foi “precipitada”. Pelé comparou o comportamento da torcida gremista ao que ele sofria na época em que jogava, e encarava a atitude como comum em um estádio de futebol.

Atitudes e pensamentos contraditórios surgiram de diversas formas em função do caso Aranha. Parte da torcida gremista ironizou a situação ao entoar o canto comum na torcida organizada com o refrão “chora macaco imundo”, na primeira partida disputada pelo tricolor gaúcho após o ocorrido na Arena do Grêmio, uma outra parte do estádio calou a organizada com vaias.

A professora e coordenadora de uma escola de educação infantil, Adete dos Santos, 51, sofreu com o racismo desde os primeiros anos de escola, ainda como aluna. “O preconceito começa com os apelidos, ‘cabelo bombril’, ‘piche de asfalto’, ‘nego saravá’, você se sente inferior e se pergunta: por que eu sou diferente?”, declara.

Em relação ao “caso Aranha” Adete critica a postura adotada para relatar o caso. “As pessoas começam a se policiar, mas o preconceito não acaba. Tem que fazer campanhas sociais para que todos conheçam a questão em si. O que aconteceu à garota gremista foi gerador de ódio, tanto contra ela quanto contra o goleiro. Ela ficou de coitada e ele como errado”, pontua.

Adete sempre sentiu que as pessoas a julgavam por ser negra. “Quando fui chamada pra coordenadora em 2002 fiquei uma semana pensando, por medo da rejeição. Daquele olhar ‘por que ela, não eu?’ conversei com alguns amigos, e cheguei a conclusão de que eu não me valorizava, eu achava que não era digna, mas até hoje não me aceito bem”, confessa.

O trabalho com crianças fez com que ela percebesse que os apelidos que recebeu na época em que estudava são o reflexo de uma rejeição ao negro ensinada em casa. “Houve um caso em que dois meninos tinham que segurar a mão de uma colega negra. Eles mudaram de lado, perguntei: ‘por que vocês fizeram isso?’ Eles disseram que foi a mãe deles que pediu, por isso tinham medo de ‘pegar’ a cor. Fiz com que cada um segurasse uma mão da garota na roda. Daquele dia em diante a turma toda fazia questão de pegar na mão dela”, conta.

Para a coordenadora as políticas públicas adotadas no país são discriminatórias e desvalorizam o negro. “Não sei para os outros, mas pra mim o sistema de Cotas raciais ‘mata’. É a forma mais preconceituosa que eu já vi pra entrar numa faculdade. Como se o negro fosse menos inteligente, só assim ele vai ser bem sucedido. Concordo com o Fies e o Prouni. Dá oportunidade pra quem é pobre”, opina. De acordo com Adete o racismo começa pelo próprio negro. “Tem gente que não se aceita e se declara pardo ou branco, a aceitação começa no íntimo de cada um”, diz.

Assim como as ações que motivaram Martin Luther King ganharam força graças a aceitação popular, as manifestações racistas que se tornaram frequentes em jogos de futebol (ou mais visadas em função da tecnologia) somente são notadas ou ganham força porque são adotadas por um número significativo de torcedores. Ou seja, se apenas Patrícia ofendesse Aranha, talvez ele não fosse capaz de ouvir ou perceber, no entanto a massa gremista proferiu palavras de cunho preconceituoso ao goleiro gerando toda a repercussão.

O racismo não existe apenas contra o negro, ele diz respeito ao preconceito referente a qualquer raça, religião, nacionalidade (país ou estado). “Em uma comunidade de maioria negra, onde uma pessoa branca é ofendida e chamada de ‘rato branco’, ‘branquelo’, isso é injúria discriminatória”, explica Gilson Amâncio, professor de Direito Penal na faculdade de Direito da Unoeste.

Amâncio lembra que a lei não foi criada para proteger o negro. “Não é só questão da raça ou etnia, se trata de religião, capacidade física, condição social, enfim. Porém as pessoas confundem muitas vezes a injúria discriminatória com o racismo. A prática de racismo é a discriminação com base na raça”.

RACISMO E INJÚRIA DISCRIMINATÓRIA SÃO JULGADOS DA MESMA FORMA?

Segundo Amâncio a injúria é um crime com uma amplitude maior do que a calúnia e a difamação. “A chamada injúria comum tem uma pena mais leve do que a injúria discriminatória”. A injúria dita comum pode ocorrer por meio de palavras ou atos que ofendam o amor próprio da vítima. “Se você tem uma rusga com a sua vizinha, e para mostrar que pra você ela é um lixo, você despeja cascas de laranja e papel velho no quintal dela. Isso é injúria”, exemplifica Amâncio.

Já a injúria discriminatória consiste em usar uma característica do individuo como elemento central da ofensa. “Dizer para um português: ‘português é burro mesmo’, ou chamar um deficiente físico de ‘aleijado’ com a intenção de ofender, assim como chamar um negro de macaco, dizer a alguém de ascendência nipônica ‘japonês é assim mesmo’, são todos exemplos de injúria discriminatória”, esclarece Amâncio.

De acordo com Amâncio a prática de racismo é a discriminação com base da raça. “Se eu tenho um restaurante e proíbo a entrada de negros, isso é racismo. Ou se eu possuo um prédio e estabeleço que todos podem usar a entrada principal, exceto os judeus, que devem entrar pelo fundo, esse é um crime de racismo”, ilustra.

A DIFERENÇA ENTRE INJÚRIA, CALÚNIA E DIFAMAÇÃO

Os três são crimes contra honra, no entanto a calúnia e a difamação atingem a honra objetiva, enquanto a injúria diz espeito a honra subjetiva. Mas o que é honra subjetiva e objetiva?

A honra subjetiva corresponde a autoestima, a dignidade ou o amor próprio da vítima. Enquanto a calúnia e a difamação que atingem a honra objetiva, ou seja, a reputação, é a atribuição de um fato, ou determinada conduta a alguém.

A calúnia é atribuição de um fato criminoso a alguém, atinge a honra objetiva. “Se eu digo: ‘fulana pegou dinheiro da bolsa da colega de sala’, estou atribuindo a ela o crime de furto, e isso é calúnia”, explica Amâncio.

Já a difamação, segundo o advogado, também atinge a honra objetiva, no entanto é a atribuição de uma conduta ou fato não criminoso a alguém. “Dizer que ‘fulana estava beijando dois rapazes ao mesmo tempo no corredor da faculdade’ é difamação. Fulana não cometeu um crime, mas esse fato pode atentar contra a honra da moça”, exemplifica.

Essa é a diferença entre calúnia e difamação embora ambos atentem contra a honra objetiva – a reputação – na primeira eu estou atribuindo um fato criminoso a vítima, na outra eu estou atribuindo um fato que não é criminoso. Em ambos os casos o fato pode ser verdadeiro, mas não descaracteriza o crime.

O terceiro crime contra a honra, a injúria, atinge a honra subjetiva da vítima. “Dizer: ‘fulana subtraiu o dinheiro da bolsa da colega’ é calúnia. Dizer: ‘fulana é uma ladra’ é injúria, pois eu atribuo a ela uma qualidade”, explana Amâncio.

A injúria consiste ocorre também por meio de atos. “Quando eu encontro alguém na rua, que estende a mão para me cumprimentar e eu ponho minha mão para trás, isso é uma injúria”, de acordo com Amâncio a injúria é qualquer ato, verbal ou gestual que atinja o amor próprio da vítima.

A lei não diferencia raça ou etnia, religião, origem, condição social, física ou gênero. Está prevista no código penal com o intuito de proteger a todos da desigualdade e para punir atos criminosos.

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