“Não mexe comigo, que eu não ando só”

A Umbanda completa 110 anos em 2018 e conta com aproximadamente 432 mil fiéis no Brasil. A religião, de origem brasileira, sintetiza vários elementos das crenças africanas e cristãs e enfrenta muito preconceito, embora tenha várias ações sociais.

Por: Bianca Pereira, Caroline Luz, Janaína Tavares e Sandra Prata

Muitas coisas acontecem entre quatro paredes. Tem gente que ama, briga, dorme, sonha, tem pesadelos. Também é nesse espaço que muitas pessoas praticam sua crença, longe dos olhos que julgam, ao lado de pessoas que compartilham da mesma fé.

Isso é o que faz a mãe de santo, Elaine Maria dos Santos Souza, 37, acompanhada de seus 26 “filhos”, que visitam seu terreiro.

À primeira vista, apenas uma casa de dois andares silenciosa e arejada em Presidente Prudente (SP) no Residencial Universitário. Porém, por trás do portão cinza de metal, a calmaria aparente dá espaço para palmas e cantos. Elaine comanda as Giras, celebrações que cultuam os ancestrais religiosos da Umbanda.

Não demora até que três forasteiras, ou estudantes de jornalismo se preferir, se aconchegam ao espaço em busca de conhecer e aprender uma nova religião. A recepção acolhedora e calorosa já quebra logo no início o gelo do novo e, aos poucos, o chão de cimento se torna um terreno confortável de ser explorado. O clima transpira simpatia e curiosidade de ambas as partes já que a visita, anunciada antecipadamente, já era esperada por todos.

Mas, fora isso, era dia especial, dia de cultuar as entidades da linha de direita – que por incrível que pareça, de nada se assemelha a questões políticas. É dia de vestir branco, cor símbolo da paz, da pureza. De colorido, só a Guia, feita de miçangas. Sempre pendurada no pescoço com sete cores. Cada uma representando uma linha de atuação da religião e movidas por um grupo de Orixás responsáveis.

Todos na expectativa, as forasteiras ansiosas para o novo mundo que iriam ver e os umbandistas animados para encontrarem seus ancestrais. No chão de concreto, o giz desenha um círculo. Geometria que delimita a posição em que os umbandistas devem professar sua fé – sempre de pés descalços, pois o solo é sagrado.

O relógio marca 17h e o sol começa a dar indícios de que não irá prestigiar por muito tempo a chegada do Caboclo, Boiadeiro e as demais entidades. Após todos estarem posicionados, o rito inicia. Crianças, adolescentes, homens e mulheres rezam com força um Pai Nosso, uma Ave-Maria e o Credo. Olhares que não estão acostumados com a religião, estranham e fazem questionamentos internos, pois essas orações são comumente vistas em cerimônias cristãs, não é algo que as forasteiras esperariam de um terreiro.

“Por muito tempo, os africanos eram obrigados a se relacionar com o cristianismo. Sendo assim, eles cultuavam os orixás utilizando as imagens de santos católicos como representação, hoje pode-se dizer que a Umbanda é composta em um tripé, um altar católico, uma prática espirita e um ritual indígena”, explicou Elaine às forasteiras depois do rito.

Dúvidas sandas, é hora de sentar e observar. Em um contexto de batuques de atabaque e palmas, um coro de vozes clama “bate a cabeça filho de Umbanda, salve a nossa Gira, salva a nossa Umbanda”. Os versos proclamados em ritmo de festa, servem de cenário para que cada filho que louva aos Orixás, saia da roda e vá até o altar, onde também se encontra o atabaque – instrumento que dá ritmo e energia aos louvores.

Lá referenciam, estabelecem uma conexão com a terra – um dos elementos considerados sagrados em suas crenças – e ofertam seu Ori, ou seja, sua alma e mente em busca de trocar qualquer energia ruim por boas vibrações.

Em pouco tempo, após longos minutos de concentração e fala silenciosa, Elaine já não é mais Elaine. Seu Zé Pelintra chega e ela se torna uma correspondente de sua palavra.

É característica das almas boemias a paixão pela noite, por uma boa cachaça e, no caso dos homens, pelas mulheres. Descrição esta que, entre tantas histórias contadas por aí, fazem parte da personalidade de Zé Pelintra, a entidade que rege a casa e o terreiro de Elaine.

Cerveja gelada descendo na garganta e chapéu na cabeça são coisas que seu Zé exige. Sem falar nos cigarros que seus filhos lhe ofertam.

A cada segundo da Gira, o coração de cada uma das forasteiras bate mais forte. É a primeira vez que presenciam algo assim. E primeiras vezes são sempre cheias de expectativas e múltiplas sensações que variam de alegria a medo e  insegurança. Porém, uma coisa é certa, os olhos seguem vidrados no aglomerado de roupas brancas que vibram a cada cântico.

E, como se não houvesse ninguém fora do habitual no ambiente, eles seguem. São quase duas horas de pontos, danças, atabaques, conselhos, brincadeiras e algumas broncas também. Conversas paralelas não são bem-vindas.

Os olhos dele, o famoso Zé, as nota, já no finalzinho da Gira. “O que vocês acharam?”, pergunta para elas. As forasteiras respondem, cuidadosamente, a verdade: “nada parecido com o que esperávamos e, incrivelmente, surpreendente”. 

Olhos que vidraram

Como foi o caso de Andreia Lacerda Torres, 32, que conheceu o som do atabaque o culto aos ancestrais há quatro anos na casa de Elaine. Ela relembra como teve seu primeiro contato com a umbanda, ainda criança em uma festa de Cosme e Damião.

Desde então sempre nutriu curiosidade acerca da religião, até que enfrentou os olhos crucificadores da sociedade e visitou pela primeira vez uma Gira, celebração que nunca mais abandonou. No dia acompanhada de sua filha, Ana Júlia Torres de 15 anos, nascida em berço evangélico, Andreia mostrou a crença para a filha. “Aos poucos trouxe a Ana comigo, ela no início tinha uma ideia muito errada do umbanda, queria ajudar a desmistificar isso”.

A jovem, hoje sempre que pode veste um vestido branco, coloca a guia no pescoço e chega ao terreiro para contemplar as entidades. Mas, nem sempre é tudo tão pacífico assim. Ana Júlia conta que já sofreu preconceito por ser umbandista, principalmente por ser tão nova. Quando fazia catequese, pessoas da igreja souberam que ela participava da umbanda com a mãe e foi até a sua casa para questionar e dizer que “esse tipo de coisa era macumba”.

Relatos assim não são tão raros, basta sentar para conversar com mais pessoas no terreiro que as descobertas começam. Marcia Cristina Esteves, 35 anos, por exemplo, ou “ovelha negra” como costuma ser chamada entre os entes familiares, já faz parte do terreiro há seis anos. A umbandista explica que é uma crença complicada porque exige muito equilíbrio emocional para lidar com o preconceito. “Já passei por casos de parentes meus me falarem que eu ia para o inferno, eu virei e disse que iríamos juntos então”, ri.

A própria Elaine já sofreu muito com isso, a mãe de santo explica que teve de abdicar de muito para viver as coisas como são hoje, inclusive, de uma boa relação com a mãe. Vítima de preconceito por vestir branco e alvo de ofensas na rua. Elaine já foi chamada de macumbeira para pior, porém, tudo são “águas passadas” e hoje ela se classifica muito esclarecida.

Depois de adentrar o universo umbandista, é hora de se despedir das entidades que, mais uma vez, saciaram a fé daqueles que nelas acreditam ao adentrarem o terreiro. Porém, engana-se quem pensa que o desfecho é assim, tão simples e sem graça. Seu Zé, como sempre o último a se despedir, faz questão que seus filhos jantem, pois “saco vazio não para em pé”, diz alegre. 

À convite, ficamos para jantar. O estrogonofe era de frango e o refrigerante gelado, mas o tempero era especial, era o que pairava no ambiente, fraternidade, alegria e união.

Axé, filhos de Aruanda!

PRECONCEITO

Fundada em 15 de novembro de 1908, a umbanda completa 110 anos em 2018. A religião, segundo censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), conta com cerca de 432 mil fiéis espalhados pelo país. Destes, conforme dados de 2017 da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), ao menos 759 foram vítimas de intolerância religiosa e denunciaram no Disque 100. O número de denúncias vem crescendo já que em 2015 era de 556 e em 2011, 15.

Saiba como os umbamdistas lidam com a intolerância religiosa no episódio 1 do podcast Sem roupa.

DESMITIFICANDO

Existe muitos boatos e diz-que-me-diz sobre a umbanda. O vídeo explica cada um dos termos mais conhecidos da religião.

FILHOS DE JUREMA EM AÇÃO