quando a criatividade se faz mais do que necessária

Barbara Munhoz, Giovanna Guessada, Izabelly Fernandes, Mayson Martins, Milene Gimenez e Noemi do Prado

Setores culturais tiveram que se adaptar para resistir a paralisação dos eventos e suprir a demanda do entretenimento

“Senhoras e senhores, o espetáculo vai comê… Espera! Não vai mais. Tem um vírus à solta, mandaram a gente cancelar…” – as cortinas se fecham, as luzes se apagam, o silêncio invade. É assim, pelo vazio, que espaços culturais do mundo todo têm sido tomados em meio à pandemia da Covid-19, que acometeu todos os setores da sociedade e forçou a engrenagem que move o globo desacelerar, assim, de uma hora para outra.

O calor dos shows, a comicidade das peças e a emoção dos longas abriram espaço para plateias vazias, palcos esquecidos e câmeras deixadas de lado. Pelo menos, essa era a percepção no início da quarentena recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que preenchia – e ainda preenche – de incertezas o retorno às atividades culturais presenciais.

Cultura e criatividade. Duas palavras que atuam juntas e cujos setores empregam mais de 800 mil profissionais, movimentando R$ 171,5 bilhões por ano no Brasil, o equivalente a 2,61% de toda riqueza nacional. Até 2021, a previsão era de que, juntos, eles gerassem R$ 43,7 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas produzidas pelo país, conforme dados da Agência Brasil.

Conheça o Histórias da Nana, projeto da professora Ana Paula Carneiro, que resolveu reunir a família para produzir lives de contação de histórias! Como forma de continuar seu trabalho de incentivo a literatura, ela viu no modelo remoto uma saída para continuar "próxima" aos alunos. O sucesso foi tão grande, que a audiência também alcançou os adultos. Além disso, em um modelo divertido e descontraído, a experiência que tem promovido momentos marcantes de união para a família!

Drama além dos palcos

“Puxa! Puxa! Como tudo está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã?”

Na obra “Alice no País das Maravilhas”, publicada em 1865 por Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, a protagonista, Alice, era projetada para um novo mundo, uma realidade completamente distinta. Quem acompanhou o drama vivido pela personagem não imaginava que um dia passaria por algo parecido. Animais falantes? Percepção diferente do tempo? No território em que a vida imita a arte – ou o contrário – essas metáforas dão luz a algo em comum ao cenário pandêmico: o surgimento de um novo normal.

Novo normal estampado, agora, nos números, depois dos dados preliminares divulgados pela pesquisa “Percepção dos Impactos da Covid-19 nos Setores Culturais e Criativos do Brasil”, concebida a partir da união de gestores públicos, pesquisadores, universidades e instituições culturais preocupadas com o reflexo da pandemia nos processos inerentes às suas áreas de atuação.

Das mais de 900 organizações (novembro de 2020), cerca de 44,4% delas registraram, entre maio e julho, a maior perda total de receita, chegando a 100%, e mais de 45% reduziram a totalidade dos colaboradores, com projeção de redução em 100% entre agosto de 2020 e janeiro de 2021. Sob esse contexto, a pesquisa também revelou que 60,51% dos indivíduos entrevistados afirmou que o serviço ou produto cultural pode ser oferecido por meio digital, acrescidos de 66,1% das organizações que compartilharam da mesma visão.  

Diário de sobrevivência

Duramente atingido pelo cancelamento de todos os tipos de eventos, o setor cultural foi obrigado a se reinventar para manter-se vivo e também manter aqueles que são responsáveis por tudo o que acontece por trás dos palcos. Tudo isso, com um toque bem generoso de criatividade.  

“Conseguimos realizar, logo no começo da pandemia, uma mostra virtual, com uma longa programação, agregando artistas de toda a cidade e de outros lugares do país. Foi uma forma de nos mantermos ativos na produção cultural, dentro das limitações de isolamento social”, relembra Luís Valente, integrante do grupo de artistas populares de rua, Rosa dos Ventos, ao lado de Fernando Ávila e Tiago Munhoz.

A gargalhada sincera de uma criança. Os olhos atentos acompanhando cada movimento. Tintas, cores, texturas. A comicidade da arte de rua vibrante que mistura teatro, música e circo. O equilíbrio entre o querer e o poder. Longe e perto. Para esses profissionais, o contato com o público aproxima-se do nostálgico. A solução? Bem…

“Mais recentemente, a partir de uma experiência de parceiros do teatro de Santa Catarina, fizemos um circo sobre rodas, com apresentações rápidas, nas portas das casas das pessoas, sem gerar aglomeração. A atividade foi muito salutar, uma forma nova de encontrar o público, nas ruas, com apresentações relâmpagos”, completa o artista. 

  • Inciso 1: auxílio emergencial de 600 reais para os artistas;
  • Inciso 2: espaços culturais, galpões e escolas que podem pleitear de 3 a 10 mil reais por mês, a partir de editais abertos pelo poder público, a fim de saberem sobre o total de despesas de uma por mês;
  • Inciso 3: chamamento público para apresentações culturais de todas as linguagens da arte. 

Além disso, o secretário municipal de Cultura, Paulo Sanches, contou que a pasta abriu um chamamento para contratar artistas da cidade para realização de lives, apresentações gravadas e drive-ins. “Nós fizemos um investimento de 100 mil reais com o Fundo Municipal de Cultura, e mesmo com a Lei Federal Aldir Blanc, ainda estamos dando continuidade na fomentação desse setor”, explica.

De acordo com esse cadastramento feito pela secretaria, foi possível destacar que a classe mais afetada pela paralisação do setor cultural foi o segmento musical. Por isso, para driblar esses efeitos, músicos da cidade tiveram que se adaptar utilizando o meio mais popular do século: a internet.

O drive-in foi algo que retornou com força durante a pandemia, já que a proposta mantém o distanciamento social, onde a pessoa não precisa sair do carro para curtir o evento. Entrevistamos algumas pessoas que foram no seu primeiro drive-in, saiba como foi!

Web x Música

Foi no ambiente virtual que o setor musical conseguiu encontrar uma saída para continuar com as produções e apresentações. Em Presidente Prudente, uma escola de música chamada Instituto Sonora, havia planejado realizar um festival musical da cidade, como forma de divulgar os artistas da região. No entanto, devido à pandemia, o Festival de Música Sonora teve que usar a internet em seu favor, promovendo as lives

De acordo com o músico e professor, Samuel Lima, 31, a ideia de fazer festivais em formatos diferentes sempre existiu. “O objetivo foi tentar, a primeiro momento, gerar uma interatividade musical de modo que o pessoal pudesse curtir música, prestigiar os artistas envolvidos e promover a divulgação deles, pois eu acho que existe muita gente boa desconhecida, entre alunos e artistas em geral”, complementa. 

O sucesso foi tão grande, que Samuel conta que os vídeos chegaram a ter cerca de 40 mil visualizações. “A princípio ficamos apreensivos, com medo de que não tivessem tantas pessoas participando, mas depois vimos a galera se mobilizando, assistindo, compartilhando. Isso foi muito bacana!” O próprio momento da pandemia pede um alívio em meio a tudo que está sendo vivido. Por isso, para Samuel, a música possui esse poder de cura, quando tudo parece incerto. “Mesmo distantes, é importante curtir com os amigos e confraternizar. E a música faz esse trabalho. A música nos conecta.”

A sala de aula também teve que ser adaptada. Agora ela se tornou o quarto, a sala ou até mesmo a cozinha de casa. E nisso, querendo ou não, a atenção não é a mesma, devido às constantes distrações do ambiente familiar. Por esse motivo, Samuel diz que foi preciso pensar em inovações para buscar um diferencial nas aulas. “Quando a criança ou adulto estão dentro da sala de aula, estão num lugar reservado só para eles. Agora em casa, adaptando para o formato online, a dinâmica da aula muda, assim como a forma de cobrar um exercício ou ensaiar uma música, pois é preciso aproveitar os recursos tecnológicos para tornar a aula o mais prazerosa possível.” 

O ambiente da web também trouxe novas oportunidades para artistas que tinham dificuldades em arrumar um lugar para se apresentar presencialmente. “É uma sacada legal, pois o espaço virtual possui um preço acessível para expor sua banda. Acho que isso gera um bom material até mesmo para possíveis contratações futuras e shows”, opina Samuel. 

Exemplo disso foi o baixista e um dos finalistas do Festival de Música Sonora, Vinicius Marioto. Como um dos favoritos, o jovem de 20 anos contou com a ajuda dos amigos e familiares para alcançar um de seus sonhos: gravar um EP, prêmio oferecido ao participante que alcançasse maior número de visualizações em seu vídeo. Quando ficou sabendo do evento, Vinicius agarrou a oportunidade no mesmo instante. O primeiro passo era escolher a música a ser gravada e, depois de uma longa procura, percebeu que essa seria uma tarefa difícil. Por fim, Marioto decidiu que uma composição original faria muito mais sentido. Na mesma noite terminou de escrever e, no dia seguinte, gravou no estúdio de um amigo. O resultado não poderia ter sido melhor.

Por ser um evento online, as fronteiras foram expandidas. Vinícius viu seus ídolos comentarem em seu vídeo e recebeu apoio de profissionais como Mateus Asato, um dos maiores guitarristas da atualidade. “Foi uma experiência incrível. Quando tive a ideia de participar, não sabia que tomaria essa proporção. Foi um mix de sentimentos, na verdade está sendo, pois deu tudo certo.”

Mesmo com todo o incentivo que recebeu, Vinicius conta que lidar com as críticas e rivalidade das torcidas foi um desafio. Isso porque os torcedores dos três finalistas se envolveram de forma intensa durante a disputa, ocasionando discussões e situações delicadas. Mas, quando questionado se faria algo de diferente, a resposta é certeira. “Eu não mudaria nada. Eu seria ingrato se quisesse mudar alguma coisa. No final das contas, as coisas boas a gente aproveita e as ruins levamos como lição”, finaliza Vinicius.

As atividades artísticas retornaram aos poucos em Presidente Prudente. Durante a Virada Cultural, as atrações passaram por algumas modificações. O musical "O Rei Do Show" por exemplo, contou com a ocupação de, no máximo, 40% da capacidade do espaço e todos os artistas precisaram fazer o uso obrigatório das máscaras durante a apresentação. (Fotos: Milene Gimenez)

Cadê o filme que ia estrear?

Salas de cinemas repletas de pessoas ansiosas para conferir o último lançamento cinematográfico, sets de filmagens com produções a todo vapor, festivais de cinemas com disputas acirradas entre grandes obras do audiovisual. Essa era a realidade do setor cinematográfico há alguns meses. Hoje, isso já é diferente.

Da noite para o dia, produtores, assistentes, atores, atrizes, cameramens, roteiristas, diretores e demais colaboradores que compõem as aglomerações dos sets de filmagem, ficaram sem trabalho. Isso também gerou impactos diretos e visíveis nas salas de cinema, que assim como o teatro, tiveram que fechar as portas. 

O curitibano Bruno Costa de Oliveira, 36, é roteirista e diretor cinematográfico e sentiu na pele os impactos da pandemia em seus projetos. Ele, que já dirigiu quatro longas-metragem, como Cinematoso, Circular, Para minha amada morta e A cidade onde envelheço, além de diversos curtas, teve que adiar a estreia do seu primeiro longa-metragem em direção solo, chamado Mirador. “A produção de longa-metragem parou, pois realmente fica inviável. São equipes maiores, o elenco costuma ter mais pessoas e história de ficção costuma ter contato mais direto, com cenas de abraços, beijos e personagens conversando muito próximo.”

O diretor já estava enviando o longa para diversos festivais de cinema ao redor do mundo, quando tudo parou. Por isso o lançamento de seu novo filme está atrasado. Alguns destes festivais migraram para internet, e por isso, Bruno viu uma saída para continuar enviando sua obra para esses eventos. No entanto, para ele, a experiência virtual nesse aspecto não é a mesma, e assim considera que este é um ano perdido no cinema. 

“Por causa disso, alguns festivais optaram por realizar versões online, mas na minha opinião, essa é mais uma maneira paliativa de driblar a pandemia. Esse modelo não supre o encontro com o público nos festivais. Ver a reação sobre o filme que você fez, as trocas de contatos do meio audiovisual, as pessoas que você conhece, tudo isso fica prejudicado no ambiente virtual”, explica Bruno. 

A diminuição das equipes também acabou refletindo nos valores, já que uma das consequências da pandemia também foi uma crise econômica que atingiu a todos. Bruno explica que os orçamentos diminuíram e os cachês estão mais baixos do que o normal. “É uma logística complicada, pois aumenta bastante os custos da produção devido a compra dos EPIs [equipamento de proteção individual], álcool em gel, materiais para higienização de figurinos, entre outros. Os produtores não estavam preparados e no cinema, onde os orçamentos são bem apertados, esse custo extra acaba inviabilizando o seguimento do projeto.”

Em contrapartida, nesse momento, Bruno tem conseguido se dedicar mais aos estudos do audiovisual e ao autoconhecimento de seu processo criativo e sua obra. Ele conta que tem aproveitado o tempo para ler livros sobre cinema, assistir a filmes e séries, já que esta também é uma de suas formas de aprendizagem. Além disso, ele também foi convidado a ministrar um curso de direção cinematográfica pela da plataforma online Olhar de Cinema Mais. Esse foi um trabalho que conseguiu fazer de forma inteiramente remota, no qual preparou e gravou todo o curso de casa e em um determinado horário, entrava ao vivo em bate papo com os alunos. Dar aula era uma experiência que Bruno não havia tido e ainda o ajudou a ganhar um dinheiro extra. 

Fora o curso e os estudos, Bruno também conta que tem se dedicado à escrita de roteiro. “Já tive uma ideia nova para outro roteiro nesse tempo de pandemia, que inclusive eu já comecei a esboçar alguma coisa do argumento dele.” Para não ficar parado, ele também tem feito alguns curtas com coisas que já tinha em arquivo e filmando pelo celular. Tudo numa pegada voltada mais para a linha experimental. 

“Tem sido um tempo para reflexão sobre a minha própria obra, histórias e ideias. Na nossa profissão, que consiste no trabalho de criação, não precisa de muita coisa. É você e suas próprias referências. Por isso, é muito bom também refletir um pouco sobre o futuro, pois com certeza vão acontecer mudanças das quais nós teremos que nos adaptar e, principalmente, para quem trabalha com criação de histórias é importante refletir sobre essas lições do mundo pós-pandemia”, conclui Bruno.

Criatividade na fotografia

A inovação e a criatividade chegaram até no ramo da fotografia. Sem a possibilidade de realizar ensaios presenciais, o modelo remoto também foi uma opção para suprir esse problema. A fotógrafa Isadora Crivelli Silvestre, 19, foi a primeira profissional da região a passar por essa experiência. 

“Tudo começou quando eu estava olhando referências no Instagram. Foi quando eu passei por uma postagem de um fotógrafo alemão e vi esse novo tipo de trabalho e de cara eu me interessei.” A fotógrafa conta que realizou a experiência com uma amiga que morava em outra cidade. Por conta da distância, as duas não podiam realizar as fotos se não fosse da maneira virtual. “Poder fazer ensaios com pessoas de diferentes lugares foi muito legal.”

No entanto, ela reconhece que o ensaio virtual acabou sendo uma “explosão momentânea”, ou seja, um meio de escape para os fotógrafos não perderem o gosto pela fotografia em meio à pandemia. “Infelizmente, no virtual não temos controle na câmera, exposição e direção do modelo. Não acho que no futuro haja a possibilidade de não existir mais os ensaios presenciais. Acredito que é insubstituível o contato com o fotógrafo”, admite. 

A jovem trabalha com fotografia desde os seus 17 anos e começou a fotografar aos 12. Somente aos 15, Isadora ganhou sua primeira câmera. Em sua opinião, a pandemia afetou cerca 60% do trabalho na área fotográfica e os 40% do trabalho que ainda se mantém em pé, se devem a edição, tratamento das imagens e produção de conteúdos para os seguidores das redes sociais. Para ela, a fotografia exige muita paciência para chegar em um resultado ideal e todas essas adaptações do setor artístico são resultado direto de como os profissionais estão lidando com a pandemia. “É aquele ditado: se a vida te der limões, faça uma limonada!”

Como a fotógrafa não viu tanto retorno nos ensaios virtuais, ela teve que partir para outra opção. As revelações polaroids. Ela e o namorado começaram a investir nesse tipo de fotografia diferenciada, com uma pegada vintage, que tem sido a tendência do momento. 

“Nós produzimos tudo. Desde a arte digital até a finalização do pacote para a entrega. É isso que as pessoas estão procurando hoje. Marcas que realmente dão atenção e que cuidam com carinho do produto que será destinado à elas”, aponta Isadora. Para ela, esse trabalho diferenciado com as polaroids tem sido compensatório, tanto financeiramente, como em relação a sua satisfação pessoal com o próprio trabalho. “Dá muito trabalho, mas compensa demais. Fica uma coisa tão linda, pois é diferente daquelas fotos 10x15cm com um aspecto ‘quadradão’”, finaliza.