COMO POLITICAMENTE CORRETO GANHOU FORÇA E TAMBÉM VIROU UM PROBLEMA

A expressão e a ideologia surgem para de diminuir as diferenças, mas esse posicionamento levanta discussões sobre o que é certo ou errado

Por: Thais Ferreira

Em algum momento da história o termo “deficiente” foi substituído por “portador de necessidades especiais”, a “obesidade” virou “sobrepeso” e o ataque unilateral dos Estados Unidos contra o Iraque se tonou “medida preventiva”.

O politicamente correto se estabeleceu como uma forma de normatizar a língua para posteriormente alterar a consciência, mas será que esse é o processo correto?

A expressão ‘politicamente correto’ começou a ser usada por volta do século XX como uma forma de acabar com as chamadas guerras culturais do inicio dos anos 1990. Segregações raciais e de gênero passaram a ser combatidas veementemente pela direita estadunidense.

A professora de História e coordenadora das pós lato sensu “História, sociedade e cultura” e “Ensino de Filosofia e Sociologia”, da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), Érica de Campos Visentini, destaca que no período em que o movimento em prol do politicamente correto surgiu alguns grupos passaram a ter espaço para se expressar. “As classes minoritárias puderem se manifestar e isso começa a gerar essa ideia do que é ou não correto.”

Essa manifestação nasce da busca por igualdades sociais, mas passou a defender e justificar interesses pessoais. O diretor de criação da Agência Audi Comunicação, Vinícius Panvechi, contesta como o comportamento do brasileiro é conflituoso em relação ao que é dito como certo ou errado. O publicitário analisa a partir das declarações desencadeadas pelo resultado das eleições de outubro de 2014. “Há um paradoxo muito grande, vivemos em uma sociedade que se preocupa com as diferenças, mas de repente começa defender uma divisão entre nordeste e sul. Existe um racha porque você não aceita a democracia?”, questiona. De acordo com Panvechi não há sentido uma sociedade buscar a igualdade, mas apoiar manifestações preconceituosas e lembra de uma frase de Ariano Suassuna que diz: “Não troco o meu oxente pelo ok de ninguém!”. O publicitário acredita que o brasileiro se apropria de culturas externas e esquece a própria essência.

A fisioterapeuta responsável pelo setor de Pediatria da Unoeste, Deborah Cristina Fernani, lembra-se de um caso em que um aluno se posicionou contra um projeto para incluir os negros nos tratamentos fisioterapêuticos, pois segundo o aluno a fisioterapia deveria ser para todos, um projeto específico não parecia correto. Fernani então esclareceu ao estudante que a área da saúde ainda enfrenta um antigo problema cultural, no qual o negro está aquém da sociedade. “Esse projeto é semelhante às cotas raciais em universidades. Se eles não existissem talvez não fosse possível inseri-los. É preciso começar de algum jeito. Não é ser politicamente correto e sim fazer o que é correto para o momento atual”, explica Fernani.

O termo ‘politicamente correto’ nasce com um objetivo positivo que ganhou força porque virou uma espécie de movimento cultural iniciado nos Estado Unidos. No entanto, apesar de muito conhecido no Brasil no início dos anos de 2010, o conceito já atingia determinados setores anos antes. “Da década de 90 para 2000 houve uma quebra, as pessoas começaram a levantar bandeiras que antes não existiam”, lembra Panvechi.

Sala de aula

Essa cobrança contínua por uma postura dita correta afeta também a dinâmica em sala de aula. “Alunos do primeiro e segundo termos têm uma espécie de fantasia sobre um professor de faculdade, eles pensam que nós somos corretos em 100 do tempo”, conta a fisioterapeuta.

A professora salienta que a postura adotada por ela em classe é mais descontraída, as aulas tem um tom de conversa, menos formal. Mesmo os alunos conhecendo a forma como ela trabalha, ainda se chocam com expressões e recursos de linguagem empregados pela fisioterapeuta. “Ainda me impressiono com a postura dos jovens. Eles se dizem ‘abertos’, mas depois acompanho a avaliação docente e aparecem dois ou três comentários dizendo que eu deveria melhorar o meu palavreado dentro da sala de aula. É lógico que eu me questionei, outros estudantes disseram que eu não exagerei, e sim que algumas pessoas são muito imaturas”, comenta Fernani.

A fisioterapeuta ressalta que a formação da sociedade atual prega pela igualdade social, mas lembra que a postura não pode ser transformada tão rapidamente em função da cultura que está enraizada. “Por mais que o jovem tenha acesso a tudo, é mais fácil consumir o que está mastigado, ele prefere não perceber a realidade do país e cria uma realidade própria”, declara Fernani.

“Ministro aulas na Unoeste desde 1999, e acredito o politicamente correto mudou a forma como dou minhas aulas. Essa forma de pensamento virou moda. Mas esse modismo já existia, só que não com essa nomenclatura”, pontua Fernani.

A professora Vinsentini explica que o indivíduo só passa a agir de maneira diferente se ele mesmo se sentir incomodado com a situação. Ela relaciona o comportamento politicamente correto ao texto de Antonie Poust, ‘O indivíduo-rei’ da coleção ‘História da vida privada’, no qual a autora retrata como a sociedade deixa de ser uma coletividade e vai se tornando uma individualidade. “A partir desse individualismo tão exacerbado começou a surgir essa ideia do que é politicamente correto ou não. Se você se sente de alguma maneira ofendido ou constrangido aí você lembra: ‘Ah isso não é certo’. Mas se você não se sente atingido, então isso não tem significado”, diz.

A partir das manifestações de grupos desfavorecidos criou-se uma série de limitações referentes ao modo como as pessoas devem falar. Por um lado foi um avanço social de classes antes excluídas, porém se tornou também uma espécie de limitador. “Se queremos caminhar para uma sociedade mais civilizada, que saiba conviver com a diferença, é uma necessidade entender o outro, assim como você tem que saber lidar com a brincadeira, ou relevar a situação, não se pode levar tudo a ferro e fogo. E a sociedade precisa saber lidar com o que é do ‘eu’ e o que é importante para o coletivo e conseguir chegar a um meio termo”, pontua Visentini.

O limite na publicidade

O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) nasceu no final dos anos 1970 para impedir que o governo criasse uma espécie de censura prévia à propaganda, no qual todos os anúncios deveriam passar por uma aprovação. Com o intuito de impedir a interferência do Estado na criação e divulgação de conteúdo publicitário foi elaborado um código por importantes representantes do setor com o propósito de fiscalizar o material destinado ao consumidor.

O código foi aprovado pelo governo e em poucos meses, anunciantes, agências e veículos passaram a subordinar seus interesses comerciais e criativos a ele. O Conar é uma ONG encarregada de fazer valer o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária.

O Conar atende a denúncias de consumidores, autoridades, associados e aquelas formuladas pela própria diretoria. Neste caso, não há censura prévia e o material veiculado é analisado após uma denúncia. Se após a análise o anúncio for qualificado como infrator de um dos preceitos do código, sai de circulação. “O Conar tem que existir senão vira sangria desatada e todo mundo faz o que quer, mas não pode”, comenta Panvechi.

No entanto o publicitário salienta que o conselho autorregulamentador começou a ser guiado pelos movimentos pró-politicamente correto. “Na década de 1980 e 1990 ele começou a agir de forma além do que devia. Por exemplo, as campanhas de cerveja com bichinhos, o Conar veio pra cima porque alguém denunciou alegando que aquele tipo de propaganda influenciava a venda de cerveja para menores. Eu não concordo, porque a forma como era explorada era completamente extrovertida e para o público adulto, então eu acho que ele agiu de forma exagerada quanto a isso. Ai começou um boicote desnecessário”, reclama Panvechi.

Esse comportamento se dá em função dos processos que a sociedade passou, segundo Visentini as lutas dos grupos minoritários favoreceram a individualização ao invés de fortalecer o sentido de igualdade e coletividade. O politicamente correto desencadeia críticas porque quem é a favor defende um interesse próprio e quem é contra não aceita tal imposição. “A gente conquistou ou avançou tanto, socialmente falando, mas individualmente a gente parece que piorou, as pessoas estão muito mais intolerantes umas com as outras”, ressalta.

Panvechi lembra que anos atrás ‘Os Trapalhões’ (Rede Globo de Televisão) conquistaram o público com um humor sem censura. Eles abordavam em suas piadas negros, pobres e aqueles com um grau menor de escolaridade, personificados nos personagens Mussum e Zacarias. “O que tinha de racismo dentro do programa era uma coisa impressionante, no entanto a própria sociedade começou a limitar de maneira excessiva a criatividade natural do brasileiro”, exemplifica.

Em decorrência das lutas pela igualdade a sociedade gradualmente mudou a forma de ver o entretenimento. “O desenho animado ‘Pica-Pau’, por exemplo, explora a violência e o oportunismo, muitas vezes a personagem principal ganha o que deseja maltratando o outro. Eu tenho filhos pequenos e não gosto que eles vejam esse desenho. Depois que se chega a um ponto esse tipo de entretenimento perde o sentido, não tem por que”, conta Visentini.

Esse mesmo posicionamento reflete diretamente na aceitação do público perante um conteúdo publicitário que busca divertir o consumidor, o interesse por um conteúdo descontraído perdeu espaço em meio à tecnologia e o medo de ofender determinado grupo. “Hoje existe um limite para o humor na publicidade, não porque a sociedade ficou mais chata, mas porque não existe mais tempo para o humor, a criatividade caiu muito por causa disso, hoje o visual é mais valorizado do que o conceitual”, diz Panvechi.

Porém o publicitário ressalta que a fiscalização é necessária desde que não seja abusiva e que o Brasil evolui muito graças ao espaço conquistado pelos grupos antes oprimidos. Em relação a isso Visentini pontua que no momento atual é preciso buscar outras formas de envolver o público. “Os publicitários tem que ser ainda mais criativos”, diz.

E acrescenta que o individualismo que impera na sociedade politicamente correta impôs um momento para reflexão do sentido de sociedade. “O indivíduo em si não consegue se relacionar com todos e com todas as conquistas sociais. A gente está nesse momento de choque, em que cada um dita o que é certo e o que é errado”, conclui Visentini. O limite está na consciência de cada um.

Pastoral Adotar é o Bicho