Imagine ter que deixar toda uma vida para trás e recomeçar do zero em um lugar desconhecido, em que se fala uma língua diferente, longe de tudo que conhece e ama? Pode parecer distante da realidade que vive o Brasil, mas milhares de pessoas ao redor do mundo são obrigadas a travar essa batalha em busca de melhores condições de vida. 

Segundo dados divulgados pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), uma parceria do Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Universidade de Brasília, no fim de 2021, cerca de 1.3 milhões de imigrantes residiam no Brasil. Nos últimos 10 anos o número de migrações anuais subiu 24%, sendo que grande parte desse fluxo foi de venezuelanos. 

Mais de 4 mil quilômetros separam a pequena Santa Elena de Uairén, fronteira com Pacaraima (Roraima), um dos principais pontos de entrada de venezuelanos no Brasil, de Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Contudo, dados do Cadastro Único revelam que 88 pessoas dessa nacionalidade residem na cidade paulista.

Como chegaram até Presidente Prudente? Quais as motivações para permanecer na cidade? Como foram acolhidos? Esses questionamentos foram o combustível inicial para a elaboração da narrativa transmídia El Camino: passos venezuelanos na terra prudentina. Aproveite a jornada.

Por Caio Gervazoni, Claudia Borges, Fernando Santos, Nathalia Salvato e Ramon Diniz

O FLUXO

Che/ga/da: ato de chegar; extremo; conclusão. Não ironicamente, a mensagem recebida minutos antes da entrevista avisava: “Estou chegando. Fui comprar leite”. E veio. Laura empurrava um carrinho de bebê e deixava claro que não estava sozinha. Em sua companhia, trazia a filha pequena, uma bolsa e a caixinha de leite. A casa era confortável, mas não era a de Laura. A venezuelana decidiu marcar a conversa na casa da sogra, Maria, já que ali estavam outros familiares que poderiam agregar à entrevista. No fim, nem foi preciso. Com um sorriso no rosto e a filha de meses no colo, contou a história de como buscou esperança em outro país: o Brasil.

Laura Arismendi, 28, morou na Venezuela até 2019, quando decidiu migrar para o país vizinho, o maior em território de todo o continente sul-americano. Ainda em seu país de origem, a jovem casou-se, deu à luz a uma filha e cursou três semestres de Jornalismo em uma universidade da região em que residia. Quando a situação do país petrolífero começou a deixar a venezuelana e sua família sem expectativas de melhora, houve uma decisão: a de procurar ajuda em outra nação. No mesmo ano, Laura, o marido, a filha, os sogros e duas sobrinhas atravessaram a fronteira da Venezuela com o Brasil no estado de Roraima, norte do país, apenas com a roupa do corpo. Sem malas, sem emprego, sem contatos próximos.

Mas “para entender o presente, é preciso estudar a história ”, defende o historiador Thiago Granja Belieiro, 41. E a história da Venezuela é tão complexa quanto qualquer outra. Localizado a noroeste do continente, o país é conhecido por estar em um território riquíssimo em petróleo, um combustível fóssil que movimenta economias, promove baixas e atua como personagem principal em diversos conflitos armados ao redor do globo. Foi justamente esse recurso que tomou a atenção do governo venezuelano a partir do século XX, momento em que as reservas de petróleo do país começaram a ser exploradas.

Dotada de reservas exuberantes, o país tornou-se o maior exportador mundial de petróleo para os Estados Unidos da América em meados da década de 30, nutrindo uma forte e perigosa relação de dependência ao governo estrangeiro. Assim, a economia venezuelana se apoiou na exportação do petróleo para alcançar lucro, gerar bens e enriquecer. E a estratégia perdurou por anos… entra presidente, sai presidente. “A Venezuela, assim como muitos outros países da América Latina, sempre foi governada por partidos de direita e de viés aristocrático”, sugere Thiago ao traçar uma linha do tempo que explica os motivos da crise no país. Dito isso, uma mudança de governantes contraditórios aos ideais um do outro poderia resultar em apenas dois fins: um grande êxito ou uma grande derrubada. A história não erra.

Quando Hugo Chávez assumiu a presidência da Venezuela em 1999, seu perfil anti-imperialista, socialista e bolivariano acendeu a chama da discórdia entre o país e os seus principais aliados econômicos. Incluindo os Estados Unidos. Apesar de manter a economia venezuelana girando em torno das exportações de petróleo e lucrando enquanto os preços dos barris estavam valorizados, o governo chavista abriu mão de investimentos industriais e agrícolas no país, acarretando em sinais de crise nos momentos em que o preço do petróleo já não estava tão em alta.

O processo foi continuado pelo governo de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez e atual presidente da Venezuela. Com o baixo investimento em demais setores da economia, o setor privado começou um grande processo de importação e, na contramão, o país começou a exportar menos. Chegou o desabastecimento, as dívidas públicas e a inflação que, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), deve fechar 2022 em 500%. O caos já estava instaurado e a esperança de milhares de venezuelanos era avistada em diversas fronteiras localizadas nos extremos de todo o território.

“A condição de vida [do povo venezuelano] piorou em razão da incapacidade de investimento por conta de um boicote econômico ”, explica o pós-doutor em Geografia, Arthur Whitacker, 52. De fato. A série de imposições políticas e econômicas dos Estados Unidos e da comunidade internacional à Venezuela impossibilitou que o país continuasse a vender seu principal recurso – o petróleo – e criou uma bola de neve que gerou apenas negatividade ao povo venezuelano. Assim como a de Laura, dezenas de milhares de famílias decidiram deixar a Venezuela em busca de condições de vida dignas e humanitária.

Durante a entrevista, Laura explica que a decisão de seguir para o Brasil foi tomada em conjunto com toda a família: seu esposo, seus sogros e suas sobrinhas (Foto: Nathalia Salvato)
Para a venezuelana que nasceu e cresceu no país, deixá-lo para trás não foi uma tarefa fácil. Entretanto, Laura julga o ato como uma "necessidade" que o momento pedia (Foto: Cedida/Laura Arismendi)

Não ficaram muito tempo na cidade de Pacaraima, município fronteiriço entre os dois países. Laura e sua família seguiram destino até Boa Vista, capital do estado de Roraima. Em meio a dificuldades, o marido da venezuelana, Reyner, arranjou pequenos trabalhos próximos ao lugar onde a família se instalou. Já com o dinheiro dos “bicos”, conseguiram comprar um botijão de gás, um fogão e uma geladeira. “Em um desses dias, meu marido ajudou um casal a descarregar mudanças de uma caminhonete. Eles perceberam o sotaque e disseram que eram líderes da Igreja Adventista do Sétimo Dia”, relata Laura ao prosseguir a história. Foi neste momento que a família recebeu um convite.

A Agência Humanitária da Igreja Adventista do Sétimo Dia, também conhecida por ADRA, é uma organização da própria instituição religiosa voltada a ajudar pessoas necessitadas em diversos países do mundo. Em Roraima, a Agência oferece um projeto chamado “Ven, tú puedes!”, em que imigrantes venezuelanos são auxiliados sobre questões de trabalho, profissionalização e empreendedorismo. Mas, também, realiza ações de entrega de marmitas a venezuelanos em situação de vulnerabilidade. “Em Boa Vista tinham muitos venezuelanos na rodoviária. Eles dormiam lá. Os homens em um papelão no chão e as mulheres e crianças em uma barraca”, conta.

Devido ao projeto necessitar de voluntários, o casal – líderes da Igreja na região – convidaram a família de Laura a ajudar na preparação das marmitas que, mais tarde, seriam distribuídas aos necessitados. “Não ganhamos nada. Era mais uma ajuda mesmo. Mas era gratificante ”. Dentro da ADRA, a família venezuelana conheceu outros conterrâneos, fez contatos e deixou a relação com os líderes ainda mais estreita. Foi quando chegou a oportunidade de firmar moradia em uma nova cidade, localizada no interior do estado de São Paulo: Presidente Prudente. “Depois de um tempo, o casal nos chamou para conversar e disse que a Igreja Adventista de Presidente Prudente ia ajudar a gente a conseguir empregos e um lugar para morar. Nós aceitamos”, conta Laura com um sotaque ainda forte, mas entendível e com certo apreço pelo português brasileiro. E, então, vieram à cidade com todos os gastos arcados pela instituição e diversos sonhos na mala.

Durante a estadia em Boa Vista (RO), Laura e a filha ajudavam na prepração de alimentos na ADRA Brasil. Logo depois, iam até a rodoviária da cidade para entregar as marmitas a outros imigrantes (Foto: Cedida/Laura Arismendi)

Em áudio, Laura explica um pouco mais da ajuda recebida.

Em 2021, 88 venezuelanos estavam cadastrados no CadÚnico do município de Presidente Prudente, de acordo com dados apurados junto à própria prefeitura. Ao fundo de todos os números, dados e porcentagens, existem histórias que caminham ao lado de milhares de prudentinos, dia após dia. Hora notadas, hora ignoradas. E em meio a uma sociedade nova e com hábitos tão diferentes, existe uma preocupação: o quanto Presidente Prudente está acolhendo as histórias venezuelanas?

 O ACOLHIMENTO

“Não há lugar como nosso lar”, já entoava Judy Garland em “O Mágico de Oz”, de 1939. Mesmo após 83 anos, o sentido da citação continua o mesmo, letra por letra: a ideia de pertencer a um lugar que se ama. Mas a pergunta que fica é: o que de fato transforma um lugar em um lar para quem lá vive?

O acolhimento é, com certeza, uma das respostas. Mérlim Ayevalo Antoima, 42, conta que, ao chegar em Presidente Prudente, recebeu o apoio do tio de seu marido. “Nós vivíamos em uma casa muito pequena. Éramos quatro famílias em apenas dois cômodos”. Entretanto, a ajuda era mais do que válida. “Ficamos dois meses sem precisar pagar aluguel. Nesse tempo, buscamos emprego. Eu, meu esposo e meus filhos”, narra.

Hoje, não existe mais aperto. Ao abrir o portão que dá acesso à nova casa, Mérlim logo trata de revelar um lugar aconchegante – com um pomar e uma pequena horta. A rampa leva direto a uma área externa com alguns sofás, claramente posicionados para receber visitas. Ou, talvez, acolher quem mais precisa. “Agora que estamos [em uma condição] melhor, oferecemos ajuda a qualquer pessoal que precise de apoio. Família não é só sangue. Nós sabemos o quanto pode ser difícil essa chegada”, conta a mulher.

Mérlim explica como foi o processo de acolhimento na cidade.

COISA DE CRIANÇA

Cesar Ramsés Martínez Farías, de 10 anos, é filho de Liliana e Jorge, dois imigrantes venezuelanos que moram em Presidente Prudente (SP). Na fotorreportagem “Coisas de criança”, é possível explorar o universo de lazer e aprendizado de uma criança acolhida pela cidade e seus munícipes.

NA ROTINA PRUDENTINA

Localizada ao oeste do estado de São Paulo, a comunidade prudentina recebeu diversos imigrantes desde a intensificação da crise venezuelana em meados de 2016. Foram inúmeras pessoas que partiram do país deixando seus familiares em busca de melhores condições de vida na região. Durante todo o trajeto, as histórias dessas pessoas cruzaram fronteiras que ultrapassaram os limites territoriais e se encontraram no âmbito do direito de ser, estar e pertencer.

O caput do artigo 4º, da Lei nº 13.445/2017, também conhecida como Lei da Imigração, defende o princípio da universalidade, da indivisibilidade e da interdependência dos direitos humanos, que dá ao imigrante as condições de igualdade de tratamento e oportunidade da mesma forma que são concedidas ao nascido brasileiro.

Andreia da Silva Subtil, 48, assistente social da Prefeitura de Presidente Prudente, é responsável pelo Departamento de Proteção Especial, uma divisão do município responsável por tratar casos de média e alta complexidade, como a questão de pessoas em situação de rua, crianças e adolescentes, idosos e imigrantes. Andreia explica que, na cidade, existe um plano de ação específico para o acolhimento de pessoas que vieram de outros países, trabalhado pelo Serviço Especializado de Abordagem. Neste documento, toda a situação do indivíduo é entendida de forma com que o objetivo do plano seja alcançado: “a política de assistência serve para ajudar as todos que precisam dela”.

A assistente lembra que, ao notarem o alto fluxo de pessoas da mesma nacionalidade chegando à cidade, o plano de ação foi posto em prática. “Aconteceu em 2021. Estávamos no meio da pandemia. Portanto, preparamos um espaço que pudesse atender aos imigrantes e dar todo o suporte necessário a cada um deles. Um abrigo acolhedor”.

Neste mesmo ano, um grande grupo de venezuelanos chegou a Presidente Prudente. Mas não eram meros imigrantes. Parte de uma comunidade indígena natural do país sul-americano – conhecidos por “warao” – foi recebida no abrigo organizado pelo Departamento de Proteção Especial. Todos passaram por um processo de triagem que permitiu a regularização de direitos perante às autoridades. Contudo, não se adaptaram ao município e resolveram partir. Andreia conta que os “warao” vivem hoje no estado de Alagoas, região nordeste do Brasil.

A decisão do grupo de indígenas reflete uma questão importante sobre o plano mantido pela Prefeitura de Presidente Prudente. “Seja para fixar residência ou para se organizar e seguir viagem a outro destino, a pessoa deve aceitar o acolhimento”, pontua a assistente social.

Um ponto curioso de todo o trâmite realizado é que, em alguns casos, o órgão responsável por monitorar e dar apoio aos imigrantes retrata o acolhimento como um ato de “violação de direitos”. A justificativa é de que a abordagem só é realizada quando o indivíduo, família ou grupo não possuem nenhum vínculo social na cidade. Em casos contrários, o Serviço Especializado de Abordagem prevê que o indivíduo já está incluso em determinado contexto e, portanto, deve seguir com a convivência familiar e comunitária sem interferência do município.

Mas não é sempre que os imigrantes procurados pela Prefeitura preferem seguir de acordo com o plano de acolhimento. Muitos deles – por não se sentirem confortáveis o bastante para dividirem espaço com outras pessoas – preferem o calor das ruas para conseguir alguns trocados, pagar algumas diárias em hotéis da cidade e, depois, se estabelecerem como munícipes ou seguirem viagem. Para além das leis e deveres do município, existe, felizmente, um acolhimento que revela na fé sua maior inspiração.

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Sempre ao lado da filha mais nova, Mérlin se diz “muito grata” por toda a ajuda e o acolhimento recebidos em Presidente Prudente (Fotos: Ramon Diniz)

Edileine Briguenti Freitas, 41, é Membro na Igreja Nova Jerusalém (INJ), uma instituição religiosa que nasceu de um círculo familiar na década de 80 e cresceu junto à Presidente Prudente ao longo dos anos. Apesar da história de fé e exaltação da igreja, Edileine conta que o projeto de acolhimento aos imigrantes organizado pela instituição vai além da religião. “Os membros da coordenação e grande parte dos voluntários do projeto pertencem a uma religião. Mas isso não é um requisito obrigatório”, destaca a [atuação].

O processo de acolhimento acontece logo a partir do primeiro encontro – ou entrevista, como a instituição chama o contato com os imigrantes. Nesta conversa, o voluntário conhece um pouco sobre a história pessoal e familiar do imigrante, além de conseguir mapear e fazer um levantamento de quais demandas são mais importantes para o indivíduo naquele momento. Edileine conta que o acompanhamento pode durar de seis a um ano, dependendo das necessidades de cada imigrante e sua família.

Quando os voluntários entendem que os indivíduos estão estabilizados, o apoio passa a ser menor. Afinal, Edileine lembra que a INJ, como também é conhecida a instituição, não possui qualquer vínculo com o governo – seja em escala municipal, estadual ou federal – e, por isso, não é possível a todos de forma contínua. A organização é mantida apenas por doações de terceiros e membros da própria igreja. Entretanto, durante o acompanhamento, a igreja dispõe de estruturas específicas para que o apoio ao imigrante seja completo, como, por exemplo, salas de alfabetização em língua portuguesa e grupos de auxílio relacionado a emprego e renda.

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida como a “igreja dos mórmons”, também realiza trabalhos de acolhimento a venezuelanos em Presidente Prudente, como conta o pastor Darwins Suarez, 38. E não. Não é mera coincidência que Darwins também seja imigrante, venezuelano e residente da cidade desde 2019. “Não tem como fugir do meu sotaque”, brinca o líder evangélico logo no começo da entrevista.

O pastor conta que a igreja é responsável por apoiar, custear e auxiliar diversos membros venezuelanos da comunidade cristã durante à vinda ao Brasil. “Desta forma, podemos garantir que estamos ajudando alguém que é realmente quem diz ser, destinando os recursos da melhor forma possível”, explica sobre o processo da instituição.

Apesar da ajuda ser direcionada aos membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, existe um caminho – ainda pouco trilhado – que estende o apoio a demais indivíduos da mesma nacionalidade, independentemente da religião. “Mesmo com o foco principal em pessoas da mesma fé, estamos tendo boas experiências com outros irmãos venezuelanos. Nós acompanhamos algumas pessoas no cadastro do CRAS, na procura por vagas nas escolas e demais serviços burocráticos”.

Segundo Darwins, quase 80% dos membros venezuelanos da igreja chegam à Presidente Prudente com casa mobiliada, aluguel pago por seis meses e até indicação de emprego. Quando questionado sobre a força desse acolhimento, o líder responde com bastante convicção: “Não chamamos [o apoio] de acolhimento. É nosso dever cristão ajudar. Não somente os venezuelanos, mas, também, outras pessoas que precisam e não conseguem caminhar com as próprias pernas”.

Além da fraternidade, o acolhimento passa por um tópico importante que define – e muito – a permanência de um venezuelano em Presidente Prudente: a busca por uma oportunidade de trabalho. E é no meio dessa jornada que novas barreiras surgem, para a infelicidade do imigrante: seja o obstáculo da língua, a burocracia necessária para empreender ou o desconhecimento da legislação trabalhista brasileira.

Guilherme Fontana Sanchez, 23, é advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos da 29ª Subseção da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do município. Em defesa ao estrangeiro, Guilherme cita o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que assegura ao imigrante todo e qualquer direito da natureza trabalhista que se garante aos nascidos brasileiros. Mas, de fato, quais são os direitos a serem reivindicados?

 

A Lei 13445 de 2017, também conhecida como Lei da Imigração, trouxe diversos direitos aos imigrantes (Fonte: Guilherme Fontana Sanchez)

Para reivindicar o direito dos imigrantes, Guilherme explica que é necessário a requisição do Formulário de Requerimento de Autorização de Trabalho por parte do estrangeiro. O pedido pode ser feito por meio da Coordenadoria Geral de Imigração, que o autoriza a trabalhar ou não no país. Depois da solicitação, cabe ao MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública de São Paulo) prosseguir com a emissão do documento.

Todo o processo deve ser assistido pela Coordenadoria, cita o advogado, uma vez que a integridade e o bem-estar social do imigrante são e estão em destaque. Além disso, Guilherme valida a importância de acompanhamento do órgão no âmbito trabalhista. “Deve-se atentar ao fato de que, para empresas que operam no Brasil, a contratação de profissionais brasileiros deve ser sempre maioria sem, no entanto, ocorrer discriminação em razão de sua condição de ser estrangeiro”.

Segundo a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), a proporcionalidade do número de estrangeiros em uma empresa não pode ultrapassar ⅓ dos trabalhadores.

Em uma contratação trabalhista ambos os lados, empresa contratante e empregado, precisam seguir alguns protocolos e apresentar a documentação corretamente. (Fonte: Guilherme Fontana Sanchez)

Com tantos trâmites e processos, é possível que, em determinado momento, o imigrante sinta-se lesado ou violado. Nesta altura, é importante ressaltar: nenhum indivíduo está sozinho na jornada em busca de melhores condições de vida. Guilherme aponta a Defensoria Pública da União (DPU) como o órgão-chave na resolução de dois pontos que possam afligir o processo de trabalho do venezuelano: 1) ajuda na obtenção de vistos e documentos e 2) violação de direitos trabalhistas.

“É importante esclarecer: regularizar a situação do estrangeiro no país é fundamental, mas a falta de documentação não poderá jamais impedir que estas pessoas tenham acesso a direitos básicos no país”, valida o advogado. Entretanto, tudo pode acontecer. Devido à barreira da língua, por exemplo, o venezuelano pode ser enganado no momento da contratação e ser submetido a experiências de trabalho desumanas que ferem os direitos básicos garantidos por lei. Essas situações podem e dever ser denunciadas.

Entender quais caminhos o estrangeiro deve percorrer em busca de uma oportunidade de emprego é o primeiro de alguns passos rumo à efetivação do indivíduo no mercado. Não menos importante, a atuação das empresas em casos como esse também deve ser mapeada para que cada informação seja transmitida de forma clara ao imigrante. Lariane Corredato Guerino, 32, entende bem esse processo. A psicóloga atua como Analista de Recursos Humanos nas áreas de Treinamento e Seleção de uma empresa em Assis, cidade do interior de São Paulo.

Segundo a psicóloga, existe uma série de ações que a empresa deve tomar no momento de contratar um novo colaborador. Cada uma delas contribui para o processo como um todo. Você pode conferi-las abaixo:

● A contratação de um novo empregado se dá pela área solicitante da empresa para a área de RH (Recursos Humanos);

● Após validado o tipo de contratação pelo setor de RH, é divulgada a vaga com os devidos requisitos, como prazo de inscrição, triagens dos currículos, testes e entrevistas;

● Depois da decisão de quem será o escolhido, a empresa realiza a proposta salarial com o classificado e agendamento de exames, feedback para os demais candidatos;

● Com os documentos regularizados e entregues ao DP (Departamento Pessoal) para cadastro no MTP (Ministério do Trabalho e Previdência), é feita a integração e apresentação do empregado à nova área;

Mesmo que as etapas citadas sejam de controle total do contratador, o imigrante pode colaborar para o sucesso da contratação ao seguir alguns conselhos de extrema importância, como explica Lariane. “Estar regularizado com os documentos básicos [Carteira de Trabalho, CPF e Registro Nacional Migratório], manter um currículo atualizado, buscar novas qualificações e estar disponível para novas oportunidades” fazem toda a diferença, segundo a profissional.

O acolhimento no mercado de trabalho prudentino não diz somente à contratação de venezuelanos por empresas da região, mas, também, ao incentivo ao sonho do imigrante de empreender e conquistar sua própria fonte de renda. Marcos Paulo Rufino, 47, professor do curso de Ciências Contábeis da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), explica que não há impedimentos para que um estrangeiro abra seu próprio negócio como Microempreendedor Individual (MEI) na cidade. Entretanto, atenta para alguns critérios básicos para que o procedimento ocorra sem empasses.

Lariane Guerino, psicóloga e analista de recursos Humanos, explica o processo de contratação de um trabalhador. (Fonte: Lariane Guerino)

Após o processo de verificação dos critérios de abertura, o próximo passo, segundo o docente, é a criação de um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, o CNPJ. “No próprio Portal do Empreendedor, você identifica as atividades que previamente foram selecionadas para realizar a formalização para retirar o CNPJ”. O Portal citado pode ser acessado pela plataforma gov.br e a validação do cadastro leva em torno de 1h para ser aprovada. Quando tudo estiver pronto, a formalização será efetivada por meio da emissão ou impressão do Certificado da Condição do Microempreendedor Individual (CCMEI).

Por ser burocrático e necessitar de validações externas – não somente dos órgãos municipais competentes – o processo tende a avançar por dias ou semanas. Por isso, é importante que o imigrante siga corretamente todo o passo a passo e esteja sempre a par do andamento das solicitações. Após a emissão do CCMEI, por exemplo, é hora do interessado acessar o site da Prefeitura de Presidente Prudente e solicitar a abertura do MEI na aba “protocolos eletrônicos”.

Um ponto importante de toda a ação são os custos envolvidos. Eles existem. Porém, de forma que, em um primeiro momento, não atingem o imigrante. Segundo Marcos Paulo, os escritórios de contabilidade possuem um convênio junto ao Governo Federal para que algumas taxas não sejam cobradas durante o processo de adequação do MEI. Posteriormente, a formalização de alvarás junto ao Corpo de Bombeiros, à Vigilância Sanitária e à Prefeitura da cidade necessitam do pagamento de valores ao escritório. “Geralmente, as taxas cobradas variam de R$ 100 a R$ 200, dependendo da atividade que o MEI irá exercer”, atenta.

Em meio a tantos processos que podem confundir o imigrante venezuelano no momento de abrir sua própria empresa, está o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Sebrae. Como forma de acolher esses indivíduos no mercado de trabalho prudentino, José Carlos Cavalcante, gerente do escritório regional, informa que todo o processo de abertura de MEI pode ser realizada na entidade – de forma totalmente gratuita.

Mas o auxílio não para por aí. Além do acompanhamento, o Sebrae oferece cursos de qualificação e orienta o futuro empreendedor sobre qual modelo de negócio é o mais adequado às suas condições. “Ele também pode participar do Empreenda Rápido e ser habilitado para obter crédito no Banco do Povo”, ressalta Cavalcante sobre o apoio fornecido pela instituição aos estrangeiros que buscam empreender.

O FUTURO

Diversos fatores levam um imigrante a escolher uma cidade – seja a estrutura, as oportunidades e necessidades. Porém, razões pontuais fazem com ele permaneça: acolhimento, pertencimento, família, amigos, emprego… Em Presidente Prudente, não seria diferente. Enquanto alguns imigrantes venezuelanos encontraram conforto necessário na cidade, outros ainda sonham com o dia do retorno ao seu país natal.

Jackson Herrera, 22, não conseguiu esconder o entusiasmo na hora de entrevista. Em um sofá logo abaixo da janela de seu quarto, o jovem contou um pouco de sua história – que passa pela Guiana Inglesa e um parente que o recebeu – e toda a sua família – na capital do Oeste Paulista. “O que eu mais gostei é que é muito calmo e seguro. Tem bastante diferença em relação as outras cidades. O acolhimento das pessoas… fomos muito bem recebidos”.

Apesar da animação em narrar, Jackson deixou claro que sente muita falta do país em que nasceu. “Aqui é muito quente”, brinca. E, naquele momento, estava. Era um sábado, perto do horário de almoço. Próximo a uma sombra de um pé de limão siciliano, o jovem demonstrou que voltar à Venezuela – mesmo sendo uma vontade – ainda não é um plano sólido. “A gente não sabe falar se voltaremos para a Venezuela. Como está a situação lá não dá. Vamos ver o que vai acontecer daqui para frente e, por enquanto, pretendo me estabilizar e ficar por aqui mais um tempo”, conta.

Jackson diz que, apesar do calor, sente-se bem em Presidente Prudente e que não pensa em voltar tão cedo para a Venezuela
(Foto: Fernando Santos)

Longe da animação do jovem venezuelano, porém, tão perto fisicamente quanto se imaginava estava a tímida Ediximiriana Corina Gomez Barreto, 20. Corina, como preferiu ser reconhecida, é vizinha da família de Jackson e está na cidade há um ano junto com a mãe, a irmã, a avó, o tio, o esposo e o filho. Naquela mesma tarde de sábado, todos – com exceção de seu marido – se encontravam em uma área externa com uma grande mesa redonda, uma geladeira e um colchão. Sem nenhum ventilador. Apesar das dificuldades em Presidente Prudente, voltar à Venezuela ainda é uma ideia distante.

“Sinto muita falta de lá. Morei a vida toda no país e parte da minha família não veio para o Brasil. Mesmo assim, prefiro voltar quando a situação melhorar”, relata.

Mesmo acanhada, Corina conta sobre o sonho de cursar Farmácia e o atual foco: a busca por uma oportunidade de emprego na cidade. “O trabalho está difícil, mas a gente dá um jeito”. Sobre permanecer em Presidente Prudente, a jovem se mostra positiva, uma vez que não conhece mais ninguém em outras cidades do país e prefere a região à cidade onde permaneceu em Roraima, logo quando imigrou. “A gente já se arrumou. As coisas estão dando certo, a criança tá na escola e meu marido tem um trabalho. Começar de novo é difícil”.

A tímida Corina conta que, assim como Jackson, voltar para a Venezula não é um de seus próximos planos (Foto: Fernando Santos)

Corina explica sobre a decisão de permanecer em Prudente.

Mas enquanto a saudade aperta o peito de alguns imigrantes, outros preferem reconhecer a estadia na cidade como um novo ciclo neste grande “el camino” percorrido ao longo de semanas, meses e anos. Oscar Eduardo Suarez Garcia, 41, e Darwin Farias Díaz, 28, não cultivam o sentimento de nostalgia quando lembram de seu país de origem.

Em Presidente Prudente há cerca de três anos, Oscar trouxe a esposa e os dois filhos para construírem, juntos, uma nova história em uma cidade desconhecida. Sempre com um sorriso no rosto ao falar do município, o homem conta que, antes, precisou passar por outros dois países, mas foi a capital do Oeste Paulista que o conquistou. “Moramos no Equador e no Peru. Mesmo apaixonados pelo Equador, hoje só iríamos lá para visitar. Prudente nos conquistou”, conta.

Ao lado de sua esposa e um casal de amigos – todos reunidos na Igreja Nova Jerusalém em um sábado à tarde, dia de aula de português – o venezuelano expôs que não consegue enxergar pontos negativos na cidade. Pelo contrário: está se informando sobre o processo de comprar o próprio imóvel e permanecer no município. “A gente nunca pode falar nunca, mas, como família, sempre falamos que gostamos muito de Prudente. Gostamos da tranquilidade, da segurança. O clima é meio doido, mas gostamos também”, e não deixa escapar as risadas.

Darwin compartilha do mesmo sentimento de Oscar. O venezuelano mora com a família em Álvares Machado – cidade próxima a Prudente – e trabalha no distrito industrial da capital da região. Mesmo com um filho da Venezuela e três na Colômbia, o rapaz não expressa vontade de voltar a esses países, tampouco o de origem. “Gosto muito de Prudente porque tenho amizades, tem lugar para dar rolê, tem economia boa e é uma cidade tranquila. Aqui é diferente, tem muita polícia e os policiais são respeitosos, coisa que na Venezuela não são”, relata.

“Aprendi a trabalhar em borracharia quando cheguei ao Brasil. O Val, que tem uma borracharia no centro de Prudente, é meu pai brasileiro. Ele me ensinou a trabalhar, a falar… me ensinou muito. Agora o meu sonho é abrir minha própria borracharia”, conta Darwin ao explicar um pouco de como foi a chegada e como será o futuro na cidade. Toda a fala é corroborada por um imenso céu azul, nítido graças a uma altitude da chácara onde o venezuelano mora. É quase como um sinal de que as coisas vão dar certo.

Enquanto Jackson, Ediximiriana, Oscar e Darwin compartilham, cada um a seu modo, a permanência em Presidente Prudente, a venezuelana Ana Pugarito, 56, já planeja o próximo destino de sua jornada. Ao lado de Russo, seu gato e fiel companheiro, a cabeleireira que reside na cidade há três anos conta sobre o novo deslocamento. “Minha amiga me propõe: ‘Ana, a gente pode trabalhar aqui com comida e doce’, e diz que posso escolher empreender com ela ou seguir minha área”, explica. A cidade escolhida? Fortaleza, capital do Ceará.

Na sala de sua atual residência, Ana, emocionada, conta sobre os motivos da mudança. “Somos pessoas fragilizadas por seremos imigrantes. Temos dificuldades em aumentar nosso salário. Queria um lugar que me desse uma renda básica, que me propiciasse liberdade para guardar dinheiro. Lá se foram três anos e eu não senti nenhuma evolução”, desabafa. Para Ana, se ela ainda está em Presidente Prudente, é por conta de uma intervenção divina –  uma fé que nunca a desampara. “Não posso dizer que estão perdidos, pois aprendi muitas coisas e creio que é a vontade de Deus estar aqui, mas sinto que preciso fazer alguma coisa diferente”.

Todas as histórias são retratos reais de pessoas que encontraram – e ainda encontram em Presidente Prudente – a esperança necessária para seguirem em frente. Do lado esquerdo do mapa, permanece uma Venezuela ainda frágil. Sobre ela, apenas o tempo pode opinar. Nos últimos meses, a moeda do país, o bolívar, perdeu mais 25% do poder de compra em apenas três dias. Não há nada neste momento que conforte quem deseja retornar e receber o abraço aconchegante de sua própria família, parentes e amigos. Mas para quem fica, Presidente Prudente mostra-se como uma alternativa de recomeço. “Já passamos por momentos muitos fortes. Mas, hoje, tudo deu mais que certo”, finaliza Laura, deixando – assim como os outros venezuelanos no município – seus passos na terra prudentina.

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Ana cita a religião com um dos motivos para acreditar que, em sua jornada, o melhor ainda está por vir (Fotos: Nathalia Salvato)

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Uma narrativa transmídia acontece quando múltiplos canais de mídia são pensados para criar um universo único. Cada um dos produtos contribui para a compreensão e enriquecimento da narrativa, contando histórias e apresentando personagens distintos. O essencial para uma narrativa transmídia é que os produtos se complementem, mas que possam ser compreendidos de forma separada, com um começo, meio e fim. Dessa forma, o leitor tem total liberdade para escolher qual a intensidade e profundidade que deseja chegar, ao imergir em uma história.

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Podcast que aborda temas comuns aos imigrantes, como xenofobia e fluxo migratório.

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Como foi a jornada dos imigrantes até Prudente? Descubra como 5 personagens chegaram até aqui.

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A Venezuela vista por eles. O jornal mural conta um pouco da vida dos personagens antes de chegarem à Presidente Prudente.

Bienvenido a casa

Nada transmite mais emoção do que imagens. Nesta exposição, os personagens abrem suas casas para a equipe do "El Camino".

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