NÃO É SÓ UMA LUTA

Mãos vazias. Este é o significado do Karatê, uma arte marcial que tem como objetivo principal a busca pelo aperfeiçoamento do caráter através do treinamento e disciplina da mente e do corpo.

Por: Alexandre Carvalho, Ana Nezi, Anne Abe, Camilla Saldanha, Raquel Siqueira, Tainá Cassiana e Thaila Sisa

“Às vezes uma criança entra no tatame de sapato e todo mundo lança o olhar meio alarmado e eu penso: calma! Daqui a pouco eu explico pra ela que é preciso deixar o sapatinho lá e que ao entrar ele deve cumprimentar a todos os presentes, como forma de respeito. Conforme as aulas, o aluno vai percebendo que há hora para tudo, não vai mais chegar ou sair a qualquer momento. Ele sabe que tem horário certo para o aquecimento, para o treino e até para beber água. Então, o Karatê é um esporte de formação.”

O olhar sereno e o jeito calmo de falar contrastam com a rigidez com que atua como professor. Os cabelos, praticamente todos brancos, revelam a experiência de um homem que há 36 anos trabalha com o Karatê. O sensei Moacir Quissi é sinônimo de respeito e admiração entre seus alunos. Durante sua trajetória, ele teve a chance de vivenciar diversas histórias de jovens que tiveram a vida modificada através do esporte.

“Teve um menino que deu muito trabalho pra mim. Quando ele era adolescente, chegou a roubar algumas coisas da minha esposa para dar à namorada e eu disse para minha mulher ‘fica calma, que a gente vai trabalhar com esse menino’. Ele até quis ir embora, mas segurei ele aqui e hoje ele é tenente da Polícia Militar. Por isso que eu falo que o esporte transforma. Acabo sendo meio pai, meio professor e eles me respeitam muito.”

Em uma época em que, quem vivia do esporte era taxado como vagabundo, Moacir largou a carreira de contabilista para correr atrás do que sempre gostou, o Karatê. E assim, poder transmitir o bem que essa escolha teve em sua vida para as outras pessoas. Hoje, a concepção de esporte mudou e ele com 61 anos, é visto como exemplo de saúde e disposição. “A primeira coisa que eu me apaixonei no Karatê foi essa questão igualitária. Aqui dentro, não pode pulseira, anel, corrente de ouro… nada! É só você e o esporte”, declarou.

Mãos vazias. Este é o significado do Karatê, uma arte marcial que tem como objetivo principal a busca pelo aperfeiçoamento do caráter através do treinamento e disciplina da mente e do corpo. Uma técnica voltada para a autodefesa, que desenvolve a força, velocidade, coordenação motora e o condicionamento físico e mental. Como esporte, ele é dividido em duas em duas modalidades: kata e kumite. O kata é como uma luta imaginária, com combinação de movimentos de ataque e defesa pré-determinados. Já o kumite é a luta propriamente dita, em competições é praticado o Shiai-Kumite, que é a luta pela conquista de pontos.

O respeito, a relação com as pessoas, lealdade, foco, a autoconfiança e competitividade são alguns dos valores sociais desenvolvidos com a prática do Karatê e passados durante os treinos diários. Segundo o sensei, o Karatê não é diferente de outros esportes, pois todo esporte é capaz de transformar. Mas a peça fundamental nesse jogo é quem está por trás coordenando a luta: o professor.

A partir do momento que uma criança pisa pela primeira vez em um tatame, ela já começa a vivenciar esses valores, o que ajuda a criar pessoas melhores, cidadãos que pensam no próximo e estão preparados para lidar com as derrotas da vida.

Moacir compara os ensinamentos da disciplina do Karatê com qualquer outra atividade na vida de uma criança, em que para aprender é necessário alguém que ensine a prática e o treinamento constante. “Uma coisa é você pegar um livro e mandar a criança ler, outra coisa é você sentar e ler junto com ela. Não basta apenas dizer a ela para escovar os dentes ou lavar bem as mãos, deve mostrar e ajudá-la a fazer. Aqui na academia, eu ensino que é preciso pedir licença pra entrar e sair, para tomar água e para voltar ao treino. Então eles vivenciam essa disciplina, não é só falar. Talvez você tenha que falar dez vezes, mas uma hora ela vai aprender”. E o sensei já presenciou muitas histórias em que o Karatê foi transformador, algumas em especial marcaram mais que outras.

O adversário agora é outro

Um exemplo é a história de persistência e gratidão com o Karatê de uma de suas ex-alunas, Renata Novaes. Carateca há aproximadamente 16 anos, hoje a sua luta deixou de ser dentro de um tatame contra outro lutador e passou a ser diária contra uma doença autoimune, mas que não a fez parar de repassar os ensinamentos aos que necessitam. O atual troféu? Seu filho.

Toda quinta-feira em um projeto social, Renata arruma as crianças em fila e ajeita o pequeno kimono no corpinho miúdo de meninos de aproximadamente cinco anos. Faz isso com paciência, em que ora puxa a orelha daquele mais arteiro e ora está despejando amor. Foi através de um projeto como esse que ela conheceu a arte marcial. Aos 12 anos já praticava diversos esportes como capoeira, judô e natação, mas foi o Karatê que a atraiu por ser um esporte motivador, onde teve a oportunidade de aprender valores sociais e morais, além de ajudá-la na interação e socialização com outras pessoas.

Após quatro anos de treino, ainda na faixa azul, Renata começou a dar aulas de Karatê em projetos. A maioria dos seus alunos são crianças carentes e que vivem em ambientes conturbados. “É um esporte muito paternalista, a criança se apega ao Karatê, porque é onde tem uma pessoa que se preocupa com ela, o sensei. Isso acaba transformando a criança em um cidadão futuro, uma pessoa que vai seguir coisas corretas na sua vida”, afirma.

O trabalho que desenvolve é voluntário, mas acaba recebendo, como recompensa, a satisfação de ver a superação e melhora do aluno. “Saber que através do Karatê, uma criança conseguiu sair daquele ambiente em que estava e que a disciplina que desenvolveu o ajudou de alguma forma, você se sente útil”, declara.

Apesar de nunca ter parado de dar aulas, há cinco anos, Renata teve que parar de competir e de treinar, após descobrir ser portadora de uma doença autoimune, o lúpus.  “Tive que aprender a conviver com essa doença no meio em que vivo que é do esporte, aprender a ter força de vontade, porque a indisposição é muito forte. Vejo que muitas pessoas que têm o lúpus, são totalmente diferentes de mim, são bem deprimidas, eu lido bem com isso, vou tentando ficar bem. E eu encontrei muito apoio no Karatê.”

E mesmo após todas essas descobertas, Renata conseguiu chegar ao 2º “dan” da faixa preta pela Federação Paulista e Confederação Brasileira de Karatê. E ainda, conseguiu engravidar – uma gravidez de risco – e ter o seu primeiro filho. Hoje, a doença está estabilizada em seu corpo e aos poucos está retornando aos treinos.

Quando um adulto começa a treinar, diferente da criança, ele já possui os valores formados, mas isso não o impede de mudar, o esporte pode agregar outras coisas em sua vida, como a autoconfiança, destacado pelo sensei. “Conforme vai ficando velho, ninguém mais liga pra você. Então, vem para o Karatê e soma algum conhecimento. A pessoa não se sente mais como se estivesse no final da vida e sim, que sua vida está fazendo sentido, pois está aprendendo algo.”

Não há idade para lutar

Outra história é a do José Carlos de Oliveira, o seu José, um dos alunos mais dedicados do Moacir. Todos os dias às seis horas da manhã em ponto, ele chega na academia com sua mochila nas costas. Muitas vezes vai a pé para a aula, um trajeto de mais de 7,6 km, que leva em torno de 1h40 para completá-lo. Com 71 anos de idade, seu José é exemplo de disposição, mas nem sempre foi assim. Já enfrentou problemas sérios com a bebida e buscou na luta a força que precisava para encarar o vício de frente.

Sobre essa luta, o professor conta que o vício vai sendo modelado conforme os treinos. “O aluno entende que precisa vir treinar. Talvez, ele comece a beber socialmente, diminuindo aos poucos, até que ele decida parar de beber, porque percebe que para fazer o exame de faixa ele precisa se dedicar. É ai que ele começa a ver a transformação na sua vida.”

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Ouça o depoimento de vida de José Carlos de Oliveira, de 71 anos e carateca há três.

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