"Pequena" audiência

Saiba como as horas em frente à TV afetam a vida das crianças

Por: Vinicius Pacheco

Às 6h, o primeiro telejornal da TV aberta brasileira já está no ar. Os outros vêm logo na sequência, com informações sobre o dia anterior e as notícias da madrugada. Às 9h, a grade de programação reserva a entrada do primeiro programa infantil e as primeiras atrações que ensinam fazer aquela receita nova. Dependendo do horário que acorda, Luís Gustavo Lima, de 13 anos, pode receber o “bom dia” de um sério jornalista que relata crimes e outros casos policiais, de uma senhora que conversa com a dona-de-casa ou de garotos prontos para atender ligações e dar prêmios. O que não muda é o hábito de fixar os olhos na telinha e passar um bom tempo em frente a ela, que pode educar ou deseducar crianças e jovens.

Tamanha “paixão”, como ele mesmo define, pela televisão fez com que o estudante resolvesse criar sua própria “emissora”. A TV Bairro, seu canal no Youtube, apresenta entrevistas que o jovem produz com a ajuda de seus amigos e familiares. A inspiração é buscada durante as 11 horas do seu dia, dedicadas a acompanhar a programação de todos os canais, principalmente telejornais. As outras 13 horas restantes do seu dia são destinadas a utilizar o computador, ir à escola, realizar as tarefas e, claro, dormir. “Mas no final de semana fico quase o dia inteiro. Algumas vezes eu estou comendo, mexendo no computador e assistindo TV ao mesmo tempo”, conta o jovem.

Cerca de dez anos de idade separam Luís dos gêmeos Caio Gomes Uehara e Ana Gomes Uehara, de dois anos e oito meses. Porém a TV também está presente na rotina diária dos dois, que já identificam suas atrações preferidas: enquanto ele é fã da animação “Diego” (Nickelodion), um garoto que salva os animais da floresta, ela gosta da “Dora, A Aventureira” (Nickelodion), que retrata as histórias de uma menina que ajuda diversos amigos e ensina palavras em inglês. E são por meio deles que os pequenos aprendem como chamam as cores, como identificar os números, e o nome de espécies de animais. “Eles sabem explicar coisas que não sabemos. Por exemplo, como é um ornitorrinco. Pegam tudo muito rápido”, afirma a mãe dos dois, a instrutora de atividades físicas Aline Gomes Uehara, de 32 anos.

A dupla assiste TV por cerca de três horas diárias. “Este é o período que eles realmente sentam e prestam atenção, pois no resto no tempo eles brincam ao mesmo tempo”, explica Aline. O pai dos dois, Élson Uehara, 33, afirma que 90 do tempo em que os gêmeos ficam acordados, o aparelho está ligado. Esse período faz com que o lema do personagem da TV e a canção de abertura da animação que mais gostam já estejam na ponta da língua. “Eles cantam as músicas, usam as fantasias dos personagens favoritos e até repetem as falas que escutam dos desenhos”, diz Aline.

Maior que a porcentagem do tempo que os dois assistem TV é a presença dela na casa das crianças. Em pesquisa feita com 180 estudantes entre 3 e 5 anos de numa instituição pública de ensino de Álvares Machado (SP), foi constatado que 99 delas possuíam o eletroeletrônico em casa. Outro dado: 82,5 passavam entre uma e quatro horas à frente dela. Jéssika Naiara da Silva, José Milton de Lima, Susana Angelin Furlan e Leonardo Orlandi comprovaram a influência das produções televisivas ao notar que as crianças trazem para a escola um repertório próprio formado por influências dos programas infantis. “Eles criavam brincadeiras baseadas naquilo que assistiram na TV, ou seja, traziam um novo significado para aquilo que acompanharam”, comenta Leonardo, 24, doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Além disso, durante este estudo foi possível notar que grande parte dos materiais escolares das crianças eram personalizados com personagens de desenhos animados, como Pica-Pau (Universal Pictures) e Pato Donald (Disney), por exemplo. “Isso é mais uma forma de demonstrarem como eles carregam essas influências”, diz Leonardo.

Segundo os resultados da pesquisa, as educadoras da instituição veem a TV como algo negativo. Diferente do que pensa a psicopedagoga Neuza Gibim, 44. “Ela pode ser boa ou ruim: depende do conteúdo que está exposto. Mas não é uma vilã. A televisão é uma fonte de informação muito legal. Um exemplo disso são os programas educativos e de documentários”, comenta.

Mas isso não justifica deixar a criança assistir desde o filme de animais falantes do horário da tarde até as cenas de sequestros da novela das nove. Quando o aparelho televisivo é a única forma de entretenimento presente no cotidiano da pessoa, pode desestimulá-la a pensar. “Como ela se mantém na passividade, recebendo tanto os estímulos visuais e auditivos, não é exigido dela nenhum esforço mental, diferente de livros e jogos, por exemplo”, declara Neuza.

Uma, duas, três, quatro horas… O crescimento do período que os pequenos viajam nas cores e brilho da telas de variadas quantidades de polegadas reflete um comportamento das gerações dos últimos 50 anos. É o que o sociólogo londrino David Bukingham defende em seu livro “Crescer na Era das Mídias: após a morte da infância”. Para ele, “ […] o principal lugar de lazer da criança foi deslocado dos espaços públicos (como as ruas) para os espaços familiares (a sala de estar) e daí para os espaços privados (o quarto de dormir)”. E é neste espaço seguro e familiar as tecnologias se espalham e entretém por longos períodos.

O papel dos pais como mediadores nesta fase é importante. “A solução não é proibí-las de assistirem TV. Isso até transforma ela em um indivíduo alienado. A opção correta é analisar o conteúdo que os filhos podem acompanhar e selecioná-los”, diz a psicopegagoga.

E quando eles querem assistir algum um conteúdo impróprio? Aquele filme violento, os seriados que discutem assuntos considerados “de adulto”? Aquele programa de entretenimento com classificação indicativa de 16 anos? A psicopedagoga é direta. “Você deve falar ao seu filho ‘este você pode assistir’ e ‘este você não pode assistir’. Se perguntar o motivo da proibição, a resposta é ‘você ainda não está preparado para isto’”.

Mas ficar sem um programinha sequer durante todo o dia, você aguentaria? Luís Gustavo é categórico: “não, nunca imaginei isso”.

Sintonizados na hora de comprar

Trash Pack é uma das novidades mais procuradas pelos pequenos; divulgação na TV é constante, afirma vendedora Natalia Fabian

Ben 10 (Cartoon Network Studios), Bob Esponja (Nickelodion), Patati Patata e Galinha Pintadinha (Bromélia Produções) já não são mais os queridinhos das crianças, pelo menos na loja de brinquedos em que trabalha a vendedora Natalia Fabian, 20. Ela conta que a cada novo personagem que aparece na mídia, os antigos são esquecidos. “Eles vão se substituindo”, declara.

Natália explica que sempre há mais procura pelos brinquedos que aparecem na programação da TV. “É só assistir as propagandas para saber o que vai ser mais procurado”, explica. Atualmente os novos “queridinhos” das crianças são o Trash Pack (DTC), conjunto de brinquedos com personagens que vivem no lixo, e bonecos da Dora, a Aventureira.

Porém o que não aparece nas propagandas e surpreendem os pais são os preços, que sobem muito quando um personagem famoso estampa os itens. Enquanto a boneca Susi (Estrela) sai por R$ 15,90, a famosa Barbie (Mattel) custa R$ 99,90 em seus modelos mais simples. Os pais que quiserem presentear seus filhos com o lava-rápido da marca Hot Wheels terão que desembolsar por volta de R$ 200, enquanto um modelo similar, de pouco destaque na TV, pode ser adquirido por 33 deste valor (R$ 60). “Muitos pais desistem das compras e vão embora. Por isso mesmo nem colocamos certos brinquedos na loja, pois já sabemos que não vai ter saída”, conclui Natália.

Gibim explica que as chamadas influenciam nas vontades das crianças, mas o problema não muda apenas ao pressionar o botão do controle remoto e trocar de canal. “A programação e as propagandas estimulam a consumir, mas as famílias de muito deles já são consumistas. Então não há diferença. Cabe ao pai explicar qual a necessidade e possibilidade de dar o brinquedo que apareceu na propaganda ou não”, posiciona-se bonus blackjack.

Preocupadas com o estímulo comercial que seus filhos recebem ao assistirem à TV, um grupo de mães surgido em 2012 debate a regulamentação das campanhas publicitárias veiculadas. O movimento Infância Livre de Consumismo defende que os valores comerciais direcionados aos pequenos não deve ser controlado apenas pelos pais, mas também pelos órgãos responsáveis por produzir e fiscalizar esse material audiovisual.

Um passo já foi dado: desde o dia 1º de março deste ano, foram proibidas ações de merchandising dentro das atrações voltadas ao público infantil. Incorporadas à Seção 11 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, as novas normas também apontam que crianças e elementos do universo infantil também não podem aparecer nestas ações promocionais. “Isso é importante, porque temos pessoas muito inteligentes produzindo os programas e preparando estratégias para convencer o público. Porém, independentemente disso, o mais importante está no ser pensante que está assistindo: sua formação e as boas escolhas que faz”, termina Gibim. Ou seja, a TV não é problema nem solução. O que a define seu bom aproveitamento está fora das polegadas das telas e dentro da cabeça de cada um.

Links e outros materiais interessantes sobre esse assunto

TV Interior, no Youtube
Neste canal online de vídeos você pode assistir aos últimos trabalhos produzidos por Luís Gustavo Lima, citado nesta reportagem, sobre os acontecimentos no bairro Ana Jacinta. Entre os feitos do garoto estão entrevistas com personalidades como o deputado estadual Ed Thomas e o prefeito de Presidente Prudente, Milton Carlos de Mello “Tupã”, além de denúncias de má conservação de ruas e espaços públicos.

“Crescer na Era das Mídias: após a morte da infância”, do sociólogo David Buckingham
O livro traz visões de diversos autores sobre como as crianças são vistas como “pequenos adultos” pelos pais, que disponibilizam tecnologias que intermediam seu contato com o mundo externo. A preocupação destacada por este livro é a transformação da infância a partir das novas mídias.

“Criança – A Alma do Negócio”, da diretora Estella Renner
A produção narra como a publicidade brasileira influencia o cotidiano das crianças, que em muitos casos conhecem mais sobre os comerciais exibidos na TV do que sobre coisas simples como frutas e legumes.

Conheça o trabalho de Luís Gustavo Lima, que produz sua própria emissora na internet

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